O Sal do Chico
- Yasmin Assis e Rafaela Pimentel
- 8 de mar. de 2017
- 6 min de leitura
Seca e vazão de rio aumentam em mais de 240% casos de hipertensão em comunidades ribeirinhas
“O mar tá invadindo dentro do rio, água salgada mesmo. As ‘mulé’ vão lavar roupa, o sabão não quer espumar. Água pra beber aqui também ninguém pode pegar, só pra cima de Piaçabuçu. E agora tá muito difícil pra pessoa viver. De repente comecei a perceber que a água tava secando e rapaz, a gente vai fazer o quê? Ele não pode secar de vez porque nosso Senhor tá no céu né? Minha mulher fica reclamando, se tivesse mesmo que nem naquela época a gente vivia melhor”.
Pescador há 45 anos, José Amilton é morador do povoado de Potengy, no município de Piaçabuçu, e faz parte das mais de 270 famílias que sofrem com o processo de salinização do Rio São Francisco. O período de seca elevado e a vazão ainda mais reduzida transformam a água característica da região, que antes era doce, em salobra. Os impactos já são sentidos pela população ribeirinha com a interferência direta na qualidade de consumo e ameaça potencial na redução dos recursos.
Sem água adequada para o abastecimento diário e o sumiço das espécies antes encontradas no rio, o cotidiano dos moradores não tem sido mais o mesmo. A saúde é um dos fatores que mais afetam a comunidade. Ao lado de seu Zé, pelo menos outras 120 pessoas já sentem o resultado deste desequilíbrio ecológico com o diagnóstico precoce da hipertensão. Em apenas dois anos, de 2014 até 2016, o número de hipertensos aumentou em 240% entre os habitantes.

E se o hábito alimentar deixa de ser a principal causa da hipertensão, o perfil dos pacientes também mudou. Os idosos, que por muito tempo foram os mais afetados pela doença, agora dividem o posto com jovens adultos e até mesmo adolescentes. A principal causa? O consumo e contato direto com a água imprópria para o consumo, agravado pela ausência de um sistema de abastecimento e um programa de saneamento básico eficiente.
Responsável por uma das duas microáreas de atendimento da região, a agente de saúde Suelli Soares revela que esta é a primeira vez, em 16 anos de trabalho, que testemunha um surto alarmante de ocorrência de hipertensos. Com uma média de cinco pessoas em cada casa e vivendo prioritariamente da pesca, as famílias se vêm sem alternativa. A aquisição de água filtrada é inviável e a única solução é tentar equilibrar o consumo intenso de sal por meio de medicações e assistências médicas semanais, como explica a profissional.
“Durante todo o tempo em que estou aqui nunca vi uma invasão tão forte do mar como temos hoje. De 2014 pra cá tudo mudou e o pior não temos como evitar. Ficamos de mãos atadas. As pessoas não têm condições de comprar água mineral para o consumo diário e a consequência disso percebemos diretamente na saúde da população. Em um ano saltamos de 19 para 39 casos de hipertensão, hoje já são 60 apenas na minha área. Não temos condição de estar nesse alarme e não fazermos nada”, lamenta Suelli.
Na programação da semana, as quartas-feiras, antes reservadas apenas para o atendimento de diabéticos, passam a ter agora um novo foco: hipertensos. Assegurados pelo Estado, os remédios controlados junto ao trabalho de conscientização educativa são as únicas garantias no apoio ao tratamento, já que em longo prazo nenhuma medida foi tomada pelos órgãos gestores.
Os grandes vilões
Considerado um dos maiores do Brasil com 2.830 km de extensão, o Rio São Francisco – carinhosamente chamado de Velho Chico – tem sofrido mudanças intensas em sua forma física. Liderado pela combinação da forte seca com uma vazão média liberada mais reduzida, o avanço da cunha salina nas águas do rio é cada vez mais constante, já que a água doce não tem força suficiente para retrair a água do mar. A mudança de habitat afeta não somente o abastecimento da população, como a altera o tipo de vegetação e fauna que ali vivem.
Desde 2013, o cenário já apontava para estas transformações. O período de estiagem que atingia o Nordeste deu inicio a uma sequência de restrições mais acentuadas na vazão liberada pelas barragens de Sobradinho e Três Marias, na Bahia. O escoamento normal médio estabelecido em 1.300m³/s caía para 1.100m³/s naquele ano e ao final de 2015 a queda foi intensificada para a marca dos 800m³/s, podendo chegar, se aprovado, ao limite de 700m³/s ainda em outubro de 2016, conforme determinação da Agência Nacional das Águas (ANA).
Pouco a pouco, estas novas diretrizes mudam a cara dos padrões originais no estuário do Rio São Francisco. Resultado da construção de barragens, a variabilidade natural associada às modificações no fluxo anual de água doce já não existem mais na região. Em consequência disto, o mar já avança até 6 km rio acima, como explica o oceanógrafo e professor de Geografia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Paulo Petter.
“Os impactos das barragens são geralmente associados aos transtornos causados pela criação do lago artificial. No entanto, não menos relevantes que estes resultados é a influência sobre a transferência de água e materiais para a zona costeira com alterações qualitativas e quantitativas, que vão desde a intrusão de água salina passando pela perda de fertilidade nos estuários até alterações dos ciclos biogeoquímicos”, salienta o professor Paulo Petter.

Na tentativa de amenizar os problemas causados pela salinização do São Francisco, a Prefeitura de Piaçabuçu, por meio da Secretaria Municipal do Meio Ambiente busca o apoio dos governos estadual e federal. O primeiro passo foi a solicitação de uma análise de água junto ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), responsável pela gestão descentralizada dos recursos naturais como a proteção aos mananciais e o desenvolvimento sustentável. O processo já está sendo tocado pelo órgão, mas ainda não apresenta avanços.
Em paralelo a estas ações, a secretaria luta ainda frente ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) pela aprovação do Projeto Água Doce. A proposta é o apoio federal na aquisição de um dessalinizador para a região, já que atualmente o município ainda não conta com o serviço por alegar falta de recursos. O aparelho representa hoje a maior chance para os moradores voltarem a ter acesso mais uma vez à água potável.
“Temos buscado apoio de todos os lados. O conteúdo da água do nosso rio está sendo devidamente averiguado pelo Comitê para que possamos conduzir as próximas etapas. Ainda no mês passado estive em Brasília para firmar parcerias de uma possível compra de um dessalinizador, o projeto está em fase de análise e uma vez aprovado será uma grande ajuda para a nossa cidade. Sozinhos, infelizmente, não conseguimos fazer muita coisa”, lamenta o secretário municipal de Meio Ambiente, Milton Muniz.
Saneamento básico
Enquanto aguarda o inicio das atividades do Plano Municipal de Saneamento Básico ofertado pelo CBHSF, o povoado de Potengy, incluído recentemente no projeto, segue sem um plano de abastecimento adequado. Isso porque, o único órgão habilitado na região, a Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal) alega ser responsável apenas pelo atendimento e monitoramento da zona urbana de Piaçabuçu e a comunidade de Mandim/Sudene, cabendo à prefeitura o suprimento específico dos ribeirinhos de Potengy.
Com avanços na fiscalização e supervisão do aumento da salinidade, a cidade de Piaçabuçu já conta com o implemento de uma paralisação obrigatória diária na captação das águas do Rio São Francisco liderada pela Casal. “Todos os dias, os registros são fechados por 6h, para que assim a água captada possa ter potabilidade e ser adequada para consumo humano”, explica Eduardo Morais Júnior, chefe de núcleo do órgão no município.
(Des) Esperança
Nem maré grande, nem maré morta. Depois das repetidas alterações sofridas pelo fenômeno da cunha salina, fazer a distinção entre o que é água doce e salina virou uma tarefa inviável para os ribeirinhos. Viver da pesca também é um desafio. Os peixes e espécies de camarões tão característicos do Velho Chico como o Robalo, a Carapeba, a Tainha, e que atuavam como principal fonte de renda na região, estão sendo naturalmente substituídos por variedades de peixes de água salgada.
Filha de mãe e pai pescadores (e também hipertensos), a moradora Jailda Barbosa não acredita que viveria para ver tamanha mudança no povoado. Dependentes da água do rio para as atividades cotidianas – desde o banho, higiene bucal ao preparo dos alimentos – as famílias ficam sem saída diante da piora do desdobramento da invasão do mar e o desequilíbrio da natureza. Com a fonte de renda cada vez mais prejudicada, ter um cuidado especial com o consumo e tratamento é quase que impensável.

“A gente até encontra peixe, mas peixe do mar. Não conseguimos usar água mineral o tempo todo. Tenho três filhos então quando temos condições compramos, mas na maioria das vezes acabamos consumindo água salgada mesmo, que é a única disponível para todos. Para nós que vivemos apenas desta atividade fica muito difícil, né? É continuar pescando, porque a única alternativa para um pescador é isso”, desabafa Jailda Barbosa.
A esperança para os moradores de Potengy é a próxima quadra chuvosa. Sem o presente no rio, a água colhida é usada para o banho e a limpeza das roupas. Com o avanço do mar, a água já adquire um aspecto grudento, de nata, tornando-se inviável para uso. Os shampoos e detergentes já não espumam mais e o preparo dos alimentos ganhou um cuidado redobrado, sobretudo, na hora de temperar as refeições em casa.
“A vida era outra. Tínhamos comida na mesa, roupa lavada e água para beber, agora tudo mudou. Nada enxágua, saímos do banho nos coçando, os cabelos bem duros e ainda muito de nós ficamos doente com isso. Esse canal do sertão transformou as coisas por aqui, tiraram da gente para dar para eles, mas temos fé que vamos voltar a ser como antes”, conta a dona de casa, Fátima dos Santos.

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