RECUPERANDO VIDAS
- Higo Fernando e Naildo Pedro
- 11 de abr. de 2017
- 5 min de leitura
COMO SALVAR NASCENTES PODE TRANSFORMAR O COTIDIANO DE TODA UMA COMUNIDADE
Você consegue imaginar como seria sua vida sem água encanada? Já pensou em caminhar longas distâncias para conseguir água, carregar baldes nas mãos e cabeça, bacias com pratos e roupas, tomar banho em um local que não pode ser considerado banheiro e fazer suas necessidades fisiológicas no meio do nada? Essa ainda é a realidade de muita gente. Dados do UNICEF revelam que para 748 milhões de pessoas em todo o mundo, conseguir esse bem vital segue representando um desafio. No Brasil, 34 milhões não tem acesso à água encanada. Contraste que preocupa, já que fomos ensinados desde criança que vivemos na Terra, o Planeta Água. Trazendo para Alagoas, dados do IBGE mostram que 25% das pessoas não possuem acesso ao abastecimento de água. São situações que passam despercebidas aos olhos da grande maioria, mas que clamam pela boa vontade da mudança.
Mudança essa que vem acontecendo aos poucos pelos cantos do estado alagoano e mudando situações parecidas descritas acima. Graças à parceria do Governo de Alagoas e a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh) vidas estão sendo transformadas com a simplificação do acesso ao líquido mais precioso do planeta. A iniciativa consiste em recuperar e proteger nascentes e direcionar suas águas para casas em comunidades rurais onde o recurso não chegava com facilidade. Até agora o programa já recuperou mais de 300 nascentes e beneficia mais de 20 mil pessoas em todo o estado. O gerente técnico e operacional da Semarh, Adolfo Barbosa, conta que tem planos de expandir muito mais esse projeto, que pode ser tomado como exemplo por qualquer pessoa. “O programa de Recuperação de Nascentes tem propósito social e ambiental porque mostra uma nova realidade para as pessoas que necessitam de água para o consumo humano”, conta Adolfo.
O QUE É UMA NASCENTE, AFINAL?

Para compreender todo processo é preciso saber, antes de tudo, o que é uma nascente. Conhecida também como olho d’água, mina d’água, fio d’água, cabeceira e fonte, nada mais é que o aparecimento, na superfície do terreno, de um lençol subterrâneo, dando origem a cursos d’água. A água das chuvas que se infiltra no solo abastece o lençol freático que se acumula em função de estar sobre uma camada impermeável. Quando essa camada encontra com a face do solo surge a nascente de encosta, brotando a água diretamente da superfície. As nascentes são facilmente encontradas nos meios rurais, que é o caso do interior alagoano de São José da Laje, local em que o projeto beneficiou o maior número de moradores da zona rural. Já são mais de 50 nascentes recuperadas só nas regiões do município.
Agora, moradores das comunidades rurais de Lavapés, Espalhados e Assentamento Caldeirões podem contar com as dádivas da natureza direcionadas através de uma tecnologia de baixo custo, tendo acesso à água encanada e de qualidade. Recuperar uma mina d’água é tarefa até que simples e que custa pouco, pois requer materiais baratos: pedaços de canos de PVC, mangueiras de borracha, bombas e cimento. A mão de obra é por conta dos moradores que já aprenderam com os técnicos da Semarh a executar o trabalho. Antônio Carlos, morador do assentamento Caldeirões, é um deles, e a gratificação em realizar o trabalho é perceptível em suas palavras. “Qualquer pessoa que descubra uma nascente que precise ser recuperada pode entrar em contato comigo, é um prazer fazer parte disso e ver como minha vida e a dos meus conhecidos mudaram com essa iniciativa”, conta.
MÃOS À OBRA
Para iniciar o processo de recuperação, o primeiro de tudo é localizar a fonte d’água e cercá-la. Em seguida é feita a limpeza da área do olho d’água, tirando pedras, tijolos, folhas e toda lama até que se encontre solo firme, onde a água brota limpa e com força. Depois, é feita uma mureta, usando pedra-ferro com 20-30 cm de largura. A altura da mureta varia para cada caso, em função da topografia do terreno. Na mureta, durante a sua construção, devem ser colocados cerca de sete canos cada um com uma função bem definida. O próximo passo é preencher com pedra-ferro o espaço entre a mureta e a mina. Por fim, deve-se cobrir a mina com lona plástica e aplicar uma boa camada de massa (mistura de barro com cimento) sobre a lona e sobre a mureta frontal de pedras. Ao mesmo tempo, abre-se uma vala, ligando a nascente até o destino do curso d’água. Então é aí que a ciência e a tecnologia são transformadas em felicidade para muitas pessoas. Com o auxílio de uma bomba, a água é levada para cerca de 40 casas da comunidade rural e para uma lavanderia que todos os moradores da região fazem proveito.
Antes não existia tanta facilidade para conseguir o recurso. Era preciso andar, e andar bastante. As moradoras Margarida Lopes e Rita de Cássia relembram quão dura era rotina que enfrentavam para lavar pratos, roupas, tomar banho e usufruir de outros usos que a água oferece. A ladeira íngreme que elas e mais vizinhas tinham que enfrentar todos os dias lembra um pouco a realidade retratada no longa “A Fonte das Mulheres” do diretor romeno Radu Mihaileanu. “O peso e a ladeira era um só sofrimento, tinha dias que a gente via a hora de enfartar”, conta Margarida. Sua amiga Rita recorda as fortes dores nas pernas que sentia por subir e descer com bacias e baldes mais de 3 vezes ao dia. “Parecia que eu tinha levado uma ‘pisa’, e não era só eu, todas as mulheres que aqui desciam comigo, todos os dias, os três horários, ficávamos acabadas”. Margarida, Rita e os demais vizinhos percorriam a mesma jornada todos os dias, debaixo do sol ou chuva, se quisessem beber, lavar ou cozinhar, vencer a distância e as dores era a única saída.

USO E REUSO
Além das casas receberem água encanada com a recuperação e direcionamento das fontes, também foi construída uma lavanderia para que os moradores possam lavar suas roupas de forma coletiva. O diferencial dessa lavanderia é que ela ganha o status de ecológica. Isso se deve ao fato de sua água suja ser reutilizada na lavoura. À medida que as donas de casa vão lavando as roupas, a água ensaboada vai descendo e caindo em 3 caixas d’água, essas contendo britas, areia e carvão ativado, fundamentais no processo de filtragem. Os resíduos do sabão ficam nas caixas e a água sai limpa e direcionada através de uma mangueira para irrigação. Mais uma vez o útil é unido ao agradável de maneira consciente e que prestigia o ambiente.
Outra consequência positiva advinda da recuperação de nascentes d’águas é a conservação ou restauração da vegetação nativa do local. Isso porque as raízes das plantas melhoram a infiltração de água no subsolo abastecendo o lençol freático além de melhorar as características químicas, físicas e biológicas do local. A composição de solo e raízes da vegetação funciona como uma esponja natural que retém grandes quantidades de água e mantem a nascente viva por muito mais tempo mesmo em períodos de estiagem. Sabendo disso, agricultores conciliam bem suas monoculturas em extremos distantes das fontes e valorizam a vegetação que compõe as nascentes, protegendo e até inserindo novas espécies ao redor, transformando num verdadeiro casamento natural.
TEMPO DE CUIDAR
Nos últimos anos, é comum ouvirmos e lermos debates a respeito do destino da água num futuro não tão distante. Hoje se sabe que os recursos naturais não são infinitos. Sua escassez é uma grande possibilidade, e o certo é que seu desperdício e distribuição desordenada nos dias atuais causam impactos em diversas vidas ao redor do mundo. Para se ter uma ideia, dos 17 objetivos da ONU, 7 envolvem preocupações com a água. A conscientização mundial tem sido um processo lento, mas que carrega a esperança de respeito à natureza e inclusão de tecnologias sociais objetivando o desenvolvimento humano coletivo. Projetos como esse mostram como conhecimento científico e sabedoria popular podem dar exemplo de que homem e natureza podem viver em consonância, e que a tecnologia aplicada a sociedade ainda tem muito a oferecer.
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